Muitos perguntam se, de fato, é permitida a presença de um autista na fila preferencial. Contudo, é sabido por todos que o autismo dá direito de acesso a atendimento preferencial em diversos lugares (Lei 13.146/2015 e Lei 12.764/2012, alterada pela Lei 13.977/2020). Entretanto, autistas leves não parecem autistas. Se eu passei minha vida sem saber dessa condição, não posso esperar que uma pessoa desconhecida perceba logo de cara que eu sou um autista e tenho esse direito. Por isso, por mais que esteja descrito em lei federal, por mais que hoje existam adesivos com a fita dos quebra-cabeças espalhadas nos locais de atendimento preferencial, é praticamente impossível usar o benefício sem passar por algum constrangimento.
Mas meu uso do benefício não se restringiu a essa situação. Uma vez, em um supermercado, dirigi-me ao caixa preferencial. Havia apenas uma senhora idosa na minha frente. Percebi que essa senhora ficou discretamente cochichando com a menina do caixa, enquanto passava suas compras. Depois disso, a menina, um tanto constrangida,
me perguntou se eu estava acompanhado de alguém de idade, pois aquele era um caixa preferencial. Eu respondi
que eu sabia disso e que eu tinha direito a usá-lo. Quando eu fiz o movimento para sacar meu documento comprobatório, ela disse ficou mais constrangida ainda e disse que não precisava mostrar. Eu realmente gostaria de
eliminar quaisquer olhares de desconfiança e apresentar o documento, mas guardei a carteira e esperei a minha vez.
Em outra situação, fui aos correios e peguei uma senha preferencial gerada numa máquina. Quando chegou
a minha vez, o funcionário disse que eu não deveria ter pego a senha preferencial. Eu disse que tinha direito,
apresentei meu laudo. Ele, incrédulo, leu o documento inteiro como se estivesse procurando um defeito nele e
como se o número de clientes esperando fosse pequeno. Com uma cara de que não estava convencido de que o documento fosse verdadeiro, finalmente decidiu me atender.
Ainda nos correios, mas em outra oportunidade, estive em uma agência cuja fila normal possui umas duas ou três horas de duração. As pessoas que estavam visivelmente irritadas, e com razão. Ao usar a fila preferencial nessa
situação, algumas pessoas foram agressivas comigo. Primeiro, começaram a cochichar, de uma maneira alta, para que eu ouvisse, de que o problema da demora é o de que algumas pessoas malandras estavam furando a fila. Depois, uma me interpelou diretamente, dizendo que aquela era uma fila para idosos.
Nisso, eu saquei a minha identidade de autista e falei para a pessoa num tom de voz alto, para todo mundo da fila ouvir que eu tinha esse direito, mostrando o documento. Ao ser atendido, infelizmente o atendente falou que eu deveria comprar outra embalagem para despachar minha correspondência e voltar para a fila. Ao retornar, passei pelo mesmo constrangimento novamente. Além de toda a fila me olhando com reprovação, novamente houve pessoas mais esquentadas querendo tirar satisfação comigo por estar na “fila dos idosos”.
Concluindo, o direito ao atendimento preferencial para autistas é mais do que claro em legislações. Mas existe
uma diferença enorme entre o que políticos imaginam dentro de seus gabinetes e o que acontece na vida real. Não
é uma canetada que vai fazer com que constrangimentos no uso de um direito desapareçam, mas um gradual aumento do entendimento do autismo por meio das interações diárias com a população. O fato de eu parecer uma pessoa normal, que não tem direito a atendimento preferencial, é fruto de um trabalho diário e um motivo de comemoração.
No entanto, independente da lei ser correta ou não, o fato é que ela existe. Muitos autistas não usam esse direito, para
evitar quaisquer constrangimentos. Eu mesmo tento evitar. Mas não vejo uma solução para esse problema. Usar a fila
preferencial para um autista é uma facilidade que cobra seu preço. Os efeitos desses constrangimentos tendem a ser
maiores em pessoas autistas do que em neurotípicas. Mas o uso desse direito é uma forma de conscientizar a sociedade de que que autistas existem.
Vicente Cassepp-Borges é Doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília, Professor Associado da Universidade Federal Fluminense, Youtuber dos canais CientifiCaliente e GATE UFF e autista nas horas vagas.
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